segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Texto para uma comunicação que não aconteceu

Eu ia apresentar no Fórum Social Mundial alguns dos resultados do Tribunal Popular que aconteceu em dezembro último (mais informações em http://www.tribunalpopular.org ), mas a organização do FSM acabou marcando duas atividades no mesmo espaço e não tive tempo. Para que o trabalho em preparar a apresentação não seja vão, resolvi colocar aqui o roteiro que fiz - daí o tom por vezes verbal do texto, que é curto e breve pois a fala não poderia ultrapassar os cinco minutos. Não tem nada de novo ou diferente, mas certas coisas é sempre bom relembrar.

"A sessão do Rio de Janeiro realizada em São Paulo no final do ano passado tratou do caso do Complexo do Alemão. Uma chacina ocorrida num complexo de favelas da capital fluminense em 2007. A chacina em si será abordada pela minha colega, mas antes que possamos entrar neste tema temos que buscar entender que este é sim um caso paradigmático da forma que o Estado trata as comunidades e a questão da violência, mas é um exemplo apenas. Um caso dramático inserido num contexto maior e já antigo de criminalização da pobreza e tratamento penal das questões sociais.

Como marcos desta lógica podemos apresentar três mecanismos estatais: o mandado de busca e apreensão genérico, o auto de resistência e o "Caveirão"; todos presentes na Chacina do Alemão.

O primeiro é uma perversão policialesca do mandado de busca e apreensão, que é uma ordem dada pelo juiz para que se vá a determinado local recolher determinados objetos. Ou seja, é necessário que o mandado especifique seu objeto precisamente. No mandado de busca e apreensão genérico isto não é respeitado. A polícia ganha carta branca para atuar em uma ampla área, como o Complexo de Alemão, invadindo residências e violentando a comunidade.

Isto é feito supostamente em nome da segurança, como fica claro pela fala do Juiz de Direito Alexandre Abrahão Dias Teixera, que foi quem primeiro concedeu tal abominação. Diz ele: "este grito de socorro e justiça promovido pelo povo deve ser atendido com urgência e rigor (...) pelo Poder Judiciário, que consciente (...) da fragilidade dos cidadãos que se aventuram em denunciar o lixo genético que lhes amedronta, cala e mate (...) [O Judiciário] não pode simplesmente encastelar-se de forma alienada para discutir meras filigranas jurídicas." A filigrana jurídica seria o texto legal que determina que o mandado de busca e apreensão dever precisar seu objeto. Curioso que quando vemos um conjunto de famílias lutando por moradia digna a filigrana jurídica é muito bem discutida para impedir que se tenha acesso a um direito fundamental.

A segunda figura é a do auto de resistência. Este é o nome do documento registrado pela polícia no caso de morte de civis pela mesma em situações de confronto. Porém, ele por vezes acaba servindo para impedir que certas execuções sejam adequadamente investigadas.

Uma pesquisa de Ignacio Cano, pesquisador da UERJ, de 1998 que estudou especificamente os autos de resistência registrados nos anos anteriores nos mostrou que: 61% dos cadáveres tinham pelo menos um tiro na cabeça, 65% possuíam tiros nas costas e havia 40 casos de disparo a queima-roupa. Todos estes são sinais de possível execução, o que demandaria um investigação mais apurada destes casos.

O mesmo autor apresentou outro estudo, deste vez sobre o tratamento dado pela Auditoria da Justiça Militar no Rio de Janeiro aos casos de mortes por policiais. Dos 301 casos estudados, 295 foram arquivados e os restantes resultaram em absolvição a pedido do próprio Ministério Público.

Só para dar uma idéia: o número de autos de resistência passou de 397 em 1998 para 1330 em 2008, sendo que apenas as delegacias informatizadas fornecem seus dados para estas estatísticas e muitas delegacias de regiões altamente conflituosas não foram ainda modernizadas. Logo, os números devem ser bem maiores - afinal eles evidentemente também não contam as mortes por policiais não registradas.

Por último, nós temos o Caveirão, que é um automóvel militar blindado utlizado pelas Polícias Militar e Civil no Rio de Janeiro nas suas incursões às favelas. De dentro os policiais vêem ao seu redor e podem disparar contra quaisquer pessoas, porém não podem ser vistos por estas, impedindo, assim, que a população identifique aqueles que os matam.

O modelo original custava R$135.000, mas seu modelo novo - do qual já forma adquiridas nove unidades - custa R$460.000. Já temos também o Caveirão do Ar, um helicóptero que custou 8 milhões para os cofres públicos. Isto dá uma idéia do montante de dinheiro que é gasto na política estatal de extermínio num Estado onde saúde, educação, moradia e sanemanento básico ainda não são disfrutados por todos.

É importante lembrar que o Caveião possui altos-falantes que berram "vim buscar sua alma" enquanto o blindado invade as favelas e que o BOPE - um de seus maiores entusiastas - possui como grito de guerra a seguinte pérola: "Homem de preto, qual é sua missão? É invadir a favela e deixar corpo no chão."

Por último, cabe apresentar algumas frases de nossas autoridades a respeito da sua política de segurança.
  • Josias Quintal (Ex-Secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro durante sua gestão): "Nosso bloco está na rua e, se tiver que ter conflito armado, que tenha. Se alguém morrer por isso, que morra. Nós vamos para dentro."
  • José Mariano Beltrame (Atual Secretário de Segurança Pública): "um tiro em Copacabana é uma coisa. Um tiro na [favela da] Coréia, no complexo do Alemão [nas zonas oeste e norte, respectivamente], é outra."
  • Ainda Beltrame, mas desta vez após uma operação que deixou 16 mortos na Vila Cruzeiro: "o remédio para trazer a paz, muitas vezes, passa por alguma ação que traz sangue" e "não se pode fazer um omelete sem quebrar alguns ovos"
  • Marcus Jardim (Chefe do 1º Comando de Policiamento de Área da Polícia Militar do Rio de Janeiro - após uma operação com 9 mortos em maio de 2008): "Conhece o produto SBP? Tem o SBPM. Não fica nenhum mosquito em pé. A PM é o melhor inseticida social."
  • Lula (Atual Presidente da República, ex-representante das classes populares e ex-político de esquerda): "Esse Estado será do jeito que a gente quiser que ele seja. (...) tem gente que acha que é possível enfrentar a bandidagem com pétalas de rosa."
Ora, se o Poder Judicário apóia esta política através da utilização do mandado de busca e apreensão genérico e da conivência quando do julgamento de casos de violência policial; se o Ministério Público sistematicamente arquiva este tipo de caso e nada faz frente a chacinas como a do Alemão; se a polícia pela sua prática cotidiana e gritos de guerra é o executor final do chacínio já programado; e, por último, os políticos e secretários estatais com suas declarações fomentam a isto tudo com sua declarações infames, o que temos é uma política de segurança pública? Não, pois o público é o interesse coletivo, a vontade popular e não o que é definido nos gabinetes governamentais a portas fechadas. O que temos é uma política de segurança contra o público, contra o povo, que é a principal vítimas destas arbitrariedades.

Temos sim uma política estatal que fomenta o extermínio das classes pobres. Classes estas que eles querem que sejam classes subalternas, mas que se recusam a aceitar esta imposição e a luta dos familiares aqui presentes é um exemplo deste enfretamento. Eles, assim como todos nós que acreditamos na possibilidade de mudança desta realidade cruel, não nos curvamos a este Estado assassino e continuamos lutando pela Justiça que o Estado tanto nos nega.

E nossa luta não será em vão e nossas vozes não serão caladas, pois enquanto não houver justiça social para todos, não haverá paz para eles."

3 comentários:

Diogo disse...

Pow Eduardo, parabéns pelo texto e pela organização do Tribunal popular, pena que não foi possível apresentar no FSM...

O texto é mto esclarecedor; muita gente não conhece as aberrações jurídicas que são o mandado de busca e apreensão genérico e o auto de resistência; e como são usados.

Depois fala um pouco sobre como foi o Fórum! rs

abraço

kahmei disse...

Aplausos
(plac, plac...)

muito bom!!
tiremos a paz aos que nos tira vida!!

[tabita] disse...

...e pensar que há partidos nesse país que se pretendem revolucionários (como o PSTU) e que "passam um pano" para a polícia, dirigindo-se a eles como se trabalhadores fossem (e não anti-trabalhadores, por seu papel social histórico de defesa do status quo da burguesia), levantando com eles bandeiras comuns e defendendo seus salários e condições de trabalho (melhores armas? melhores metralhadoras? melhores caveirões?...) que servem para nos oprimir, nos humilhar e matar.

que coisa, não? onde vamos com esta esquerda?
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