segunda-feira, 27 de abril de 2009

Os Seres

Num bar ao lado de um cinema descolado na capital fluminense, o segurança local olha atentamente para um morador de rua que caminhando se aproxima e para perto da entrada do local.

- Não pode ficar aqui não, vai saindo. - prontamente enuncia o defensor do espaço público (privado)
- Só tô parado na porta daqui. Não tô importunando ninguém.
- Mesmo assim vou pedir para que se retire. Sai. Está atrapalhando os clientes.
- Com esse tipo de atitude os seres vão te pegar.
- Tá maluco porra! Tá dizendo que vai me me pegar? Você vai me pegar?
- Eu não. Os seres.
- Que merda é essa?! Tá me ameaçando caralho? Te quebro!
- Eu não disse que ia te pegar, disse que os seres iam te pegar.
- Você quer cair na mão comigo?
- Eu não. Disse para tomar cuidado com os seres, não comigo.
- Tá me tirando!? Que porra é essa de "seres"? Você é "os seres"? Você quer cair dentro?
- Eu não. Os seres é que vão te pegar se continuar tratando gente que nem eu assim.
- E quem são esses "seres"? Se for você, pode vir que te parto aqui e agora.
- Eu não. Os seres é que vão te pegar.
- Que porra é essa de "os seres"!?
- Os seres são como eu, invisíveis. Eles ficam nos cantos escuros das cidades, jogados na sarjeta e transitam como se não fossem. Ninguém os vê, ninguém repara na sua existência. Ninguém se choca mais. Fazemos parte da paisagem. Nos movemos como larvas e ratos. Nos esgueiramos pelas brechas e rachaduras do concreto e comemos o resto, o lixo, aquilo que você cuspiu. Seu dejeto é o nosso alimento e aquilo que você rejeita, destrói e descarta é o que nos mantém vivos. Mas os seres estão atentos. Sabemos o que vocês (não) pensam de nós. Um dia os seres podem se voltar contra você, mas não por ódio ou inveja. Já conhecemos seu jogo e sua sociedade e não queremos fazer parte dela e é por isso que você deve tomar cuidado. Nosso desprezo é nossa principal arma, mas não é a única. Cuidado com os seres.

No meio da fala o segurança já ignorava o mendigo e já tinha ido embora pegar uma madeira para expulsá-lo "debaixo de vara". Não poderia aturar um sujo falando esse monte de baboseira atrapalhando o negócio do patrão. Enquanto ia pegar seu porrete continuava ouvindo a voz do vagabundo ao fundo, mas sem prestar atenção nas palavras. Quanto reapareceu na porta não ouviu mais nada, apesar de ter certeza que há pouco ainda ouvia a voz, apenas sentiu o cheiro de lixo, carne putrefata e as sombras da cidade um pouco mais escuras.

Livremente baseado na obra 'Os Seres' de El Efecto.

sábado, 4 de abril de 2009

Galeano e Reunião do G-20

Comentários do escritor uruguaio sobre a "solução" para a crise proposta na reunião do G-20 de se destinar R$1 trilhão para os organismos financeiros internacionais (FMI e Banco Mundial, por exemplo): Estas entidades não são organismos internacionais pois não representam a "vontade do mundo", mas sim a dos "donos do mundo, que são os que estão empurrando o planeta para o abismo. (...) São os que impuseram, justamente, por meio do BM e do FMI, a religião do mercado, são os que fizereram purê do Estado, e os que obrigaram o povo a dançar a salsa ao ritmo da orquestra do Titanic. (...) com todo o dinheiro que os culpados pela quebra universal estão recebendo seria possível acabar com a fome no mundo."

quarta-feira, 1 de abril de 2009

1° de Abril de 1964 - O dia que ainda não terminou

Os golpistas – incluída toda a imprensa, menos a Última Hora – insistiam em dizer que a data era 31 de março; nós, que era primeiro de abril. Ainda mais que eles tentavam dizer que tinha sido uma “revolução”, confessando o prestigio da palavra revolução – até ali identificado com a revolução cubana.

O que são 45 anos – transcorridos desde aquele primeiro de abril até hoje? O que foi aquilo? O que restou daquilo?

Medido no tempo, parece algo distante. Afinal, tinham transcorridos apenas 34 anos desde a revolução de 30 - o momento de maior ruptura progressista na história brasileira. Período que incluiu os 15 anos do primeiro governo de Getúlio e os 19 de democracia liberal, incluídos os 4 do novo mandato de Getúlio e os 5 do JK.Nem é necessário discorrer muito para dizer que se tratou de um golpe militar, que introduziu uma ditadura militar.

Nem a “ditabranda” da FSP (Força Serra Presidente), nem o “autoritarismo” de FHC – todas tentativas de suavizar o regime. Um regime dirigido formal e realmente pela alta oficialidade das FFAA, que reorganizou o Estado em torno dessas instituições, tendo o SNI como seu instrumento de militarização das relações sociais. Um regime que atuou politicamente a favor da hegemonia do grande capital nacional e internacional. Para isso, entre suas primeiras medidas estiveram a intervenção militar em todos os sindicatos e o arrocho salarial – a proibição de qualquer campanha salarial, sonho de todo grande empresário.

Para que se criasse um clima que desembocou no golpe militar, foi montada uma campanha de desestabilização que – hoje se sabe, pelas atas do Senado dos EUA – tinha sua condução diretamente naquele país, com participação direta do então embaixador norte-americano e a cumplicidade ativa da grande mídia – que até hoje não fizeram autocrítica do papel ditatorial que tiveram, nem mesmo a FSP, que emprestou seus carros para ações repressivas da Oban -, somada às mobilizações feitas pela Igreja Católica e pelos partidos de direita – com o lacerdismo moralizante na cabeça.

Nunca como naquele período as grandes empresas privadas lucraram tanto. Foram elas as maiores beneficiárias da repressão – prisões arbitrárias, torturas, fuzilamentos, desaparições, entre outras formas de violência de um regime do terror. Foram o setor economicamente hegemônico durante a ditadura –ao contrário da visão inconsistente de FHC, de que uma suposta “burguesia de Estado” seria o setor hegemônico, para absolver os grandes monopólios nacionais e internacionais.O Brasil vinha vivendo um processo importante de democratização social, política e cultural. O movimento sindical se expandia, os funcionários públicos passavam a incorporar-se a ele, os militares de baixa graduação passavam a poder se organizar e se candidatar ao Parlamento, se desenvolvia a sindicalização rural, acelerava-se a criação de uma forte e diversificada cultural popular – no cinema, no teatro, nas artes plásticas, -, um movimento editorial de esquerda se fortalecia muito.Foi para brecar a construção da democracia que o golpe foi dado.

Com um caráter abertamente antidemocrático e fortemente antipopular – como as decisões imediatas contra os sindicatos e campanhas salariais demonstram -, foi um instrumento do grande capital e da estratégia de guerra fria dos EUA na região.1964 se constituiu em um momento de forte inflexão na história brasileira. O modelo de desenvolvimento industrial passou a se centrar na produção para a alta esfera do consumo e a para a exportação, acentuando a concentração de renda e a desigualdade social, assim como a dependência.O Brasil que saiu da ditadura, 21 anos depois, era um país diferente daquele de 1964. As organizações democráticas e populares haviam sido duramente golpeadas.

A imprensa havia sido depurada dos órgãos de esquerda. (Não esquecer que a resistência na imprensa foi feita pela chamada imprensa nanica, por si só uma denúncia da imprensa tradicional.) O país havia se transformado no mais desigual do continente mais desigual do mundo.Vários dirigentes da ditadura ainda andam por aí, junto com seus filhos e netos, dando lições de democracia, sendo entrevistados e escrevendo artigos na imprensa. A imprensa não dirá nada ou tentará, uma vez mais, se passar por vítima da ditadura, escondendo o papel real que desempenhou. (Que tal republicar as manchetes de cada órgão naquele primeiro de abril de 1964?)

Na resistência e na oposição à ditadura se provou quem era e é democrata no Brasil.

Por Emir Sader