- Não pode ficar aqui não, vai saindo. - prontamente enuncia o defensor do espaço público (privado)
- Só tô parado na porta daqui. Não tô importunando ninguém.
- Mesmo assim vou pedir para que se retire. Sai. Está atrapalhando os clientes.
- Com esse tipo de atitude os seres vão te pegar.
- Tá maluco porra! Tá dizendo que vai me me pegar? Você vai me pegar?
- Eu não. Os seres.
- Que merda é essa?! Tá me ameaçando caralho? Te quebro!
- Eu não disse que ia te pegar, disse que os seres iam te pegar.
- Você quer cair na mão comigo?
- Eu não. Disse para tomar cuidado com os seres, não comigo.
- Tá me tirando!? Que porra é essa de "seres"? Você é "os seres"? Você quer cair dentro?
- Eu não. Os seres é que vão te pegar se continuar tratando gente que nem eu assim.
- E quem são esses "seres"? Se for você, pode vir que te parto aqui e agora.
- Eu não. Os seres é que vão te pegar.
- Que porra é essa de "os seres"!?
- Os seres são como eu, invisíveis. Eles ficam nos cantos escuros das cidades, jogados na sarjeta e transitam como se não fossem. Ninguém os vê, ninguém repara na sua existência. Ninguém se choca mais. Fazemos parte da paisagem. Nos movemos como larvas e ratos. Nos esgueiramos pelas brechas e rachaduras do concreto e comemos o resto, o lixo, aquilo que você cuspiu. Seu dejeto é o nosso alimento e aquilo que você rejeita, destrói e descarta é o que nos mantém vivos. Mas os seres estão atentos. Sabemos o que vocês (não) pensam de nós. Um dia os seres podem se voltar contra você, mas não por ódio ou inveja. Já conhecemos seu jogo e sua sociedade e não queremos fazer parte dela e é por isso que você deve tomar cuidado. Nosso desprezo é nossa principal arma, mas não é a única. Cuidado com os seres.
No meio da fala o segurança já ignorava o mendigo e já tinha ido embora pegar uma madeira para expulsá-lo "debaixo de vara". Não poderia aturar um sujo falando esse monte de baboseira atrapalhando o negócio do patrão. Enquanto ia pegar seu porrete continuava ouvindo a voz do vagabundo ao fundo, mas sem prestar atenção nas palavras. Quanto reapareceu na porta não ouviu mais nada, apesar de ter certeza que há pouco ainda ouvia a voz, apenas sentiu o cheiro de lixo, carne putrefata e as sombras da cidade um pouco mais escuras.